Há uma semana, o Diário de Notícias noticiou o engarrafamento dos Registos Centrais com processos de nacionalidade. Não é novo. A novidade está em o aumento não acontecer apenas com descendentes de judeus sefarditas, mas também com brasileiros e outros da CPLP. Mas, citando o DN números de 2021, “a maioria dos processos são de judeus sefarditas”, acrescentando: “Entre 2010 e 2016, os serviços do IRN recebiam uma média de 100 mil pedidos de nacionalidade por ano. Nos últimos cinco anos, essa média anual tem ultrapassado os 160 mil pedidos. Só em 2021 entraram mais de 195 mil pedidos de nacionalidade.” A pressão cresceu em 2022: “Agosto foi o pior mês, mais de três mil pedidos por dia.”
Os problemas com o regime dos sefarditas foram conhecidos em 2020, aquando de uma revisão da Lei da Nacionalidade e sob propostas da deputada Constança Urbano de Sousa. Soaram quatro ordens de problemas: publicidade descarada de advogados e outros agentes, caudal excessivo de pedidos, desconfiança quanto à idoneidade de certificações apresentadas, insuficiência das exigências normativas. O impulso da deputada socialista seguiu uma via errada: por um lado, alvejava a lei orgânica (que não estava mal), em vez de apontar à lei regulamentar (o decreto-lei, carecido de melhoramentos); por outro, não abrira um processo legislativo próprio, mas tentava cavalgar o processo aberto para outras questões específicas.
Conhecidos os problemas em 2020, deu, na altura, para ver que tinham começado já em 2018, quando os pedidos de sefarditas chegaram a quase 14 000 (dobrando o total do ano anterior), para ultrapassarem os 25 000 em 2019. Mas, depois do grande alarme, nada foi feito.
O regulamento original, de 2015, era o ajustado à aplicação da lei, pelo conhecimento que havia. Mas, perante os problemas revelados, que ninguém antecipara, pedia correcções e um quadro mais exigente. Foi a posição que tomei, em vários artigos, incluindo neste jornal: “É intolerável a permissividade administrativa e regulamentar nos casos lançados para o ar. Onde está a afinação necessária do regime regulamentar?”
O normal era que, de imediato, o governo tivesse ajustado o decreto-lei aos problemas denunciados, impedindo a continuação e deterioração de um quadro negativo. A Constituição fixa que é ao governo que compete, “no exercício de funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis.”
As alterações regulamentares, que não tinham saído em 2018 e 2019, tornaram a não sair em 2020 e 2021, mas apenas em Março de 2022, com entrada em vigor 15 dias depois. Ainda assim, com duas peculiaridades que exigem explicação clara face ao alarme que foi gerado. Primeiro, as novas normas aplicaram-se logo a todos os processos pendentes, excepto para o regime dos sefarditas, em que se aplicam somente aos novos processos. Segundo, o novo regulamento entrou logo em vigor para todos os regimes, excepto o dos sefarditas, em que o regime antigo teve vigência estendida por mais seis meses.
Foi isto que gerou uma espécie de “efeito de chamada”, com consequente correria à Conservatória antes que a maior exigência entrasse em vigor. O triste espetáculo do mês de agosto – com afluxo de “mais de três mil pedidos por dia” – tem aqui a sua causa. Se, por efeito deste retardador, entraram 50 000 processos (o que nem é muito face aos indicadores anteriores), poderiam fazer-se títulos dizendo “Estado lucra 12,5 milhões de euros com sefarditas”. Seria populismo fácil e má-fé, jogando com a aplicação da taxa de 250 euros que cabe a cada processo destes. Mas igual ao que na imprensa se colou a comunidades judaicas.
Há, aqui, matéria que só o governo pode explicar. Só o governo tem os dados e as informações. E só o governo toma (ou não toma) as decisões. O mesmo se diga do badalado caso Abramovich. Por que foi despachado? E, se é verdade que beneficiou de um regime de aceleração, quem pediu essa aceleração? E por que lhe foi concedida? Nós não sabemos. O governo sabe.
Não está certo aplicar mal uma lei e assim a desacreditar. O dever é regulamentá-la bem e aplicá-la sempre melhor.
FONTE: Este conteúdo foi originalmente publicado pelo Diário de Notícias, um jornal sediado em Lisboa e fundado em 1864.