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Os brasileiros que escolheram Portugal para ensinar, investigar e morar

jan 2 2023

Há 18 anos que Cristina Freitas trocou o estado de Minas Gerais pela região centro de Portugal. Vinha passar o Natal de 2004 com uma amiga de Coimbra, sem saber que ficaria por muitos anos: casou com um português, rendeu-se à universidade, de cujo Arquivo é atual diretora. Percebe-se ainda um ligeiro sotaque, mas nada que se compare com o que trazia quando chegou, vinda da universidade de Salamanca, onde frequentava o doutoramento. A professora de ciências da informação – que ainda dá aulas em licenciatura, mestrado e doutoramento – é desde 2019 a diretora do Arquivo da Universidade de Coimbra, onde funciona também o Arquivo Distrital. Uma entre os cerca de 3000 brasileiros que povoam a universidade, na esmagadora maioria estudantes, mas cada vez mais professores e investigadores. Antes disso, foi sub-diretora da secção de ciências da informação, integrando o departamento de filosofia, comunicação e informação.

“Só há dois casos em Portugal, idênticos: o da universidade de Coimbra e da universidade do Minho”, conta ao DN Cristina Freitas, quando fala dos dois arquivos que dirige: o da universidade e o arquivo distrital.

Cristina é natural do Rio de Janeiro, mas foi criada em Minas Gerais. Depois da licenciatura em ciências da informação, foi uma das primeiras doutoradas nessa área a dar aulas na universidade de Coimbra. “Antes já tinha passado pela Universidade Portucalense (2008/09) e também pela Fernando Pessoa. Só em 2010 fui convidada pela Universidade de Coimbra”, conta ao DN, ela que é uma apaixonada pela centralidade da região, e sobretudo “pela mobilidade”. Além disso, Cristina considera que “a cultura portuguesa é muito parecida com a cultura mineira”.

A professora não esconde o orgulho de carregar “essa responsabilidade de cuidar de um património com mais de 700 anos, com 10 km de documentação”.

Ao longo destes anos, Cristina Freitas nunca equacionou regressar ao Brasil, “nem quando houve uma crise muito grande, por volta de 2009, quando ainda nem tinha terminado o doutoramento”. Porquê? “Porque adaptei-me perfeitamente à realidade portuguesa”, afirma, salvaguardando “o uso dos pronomes, a que uma pessoa nunca se adapta”.

Nunca sentiu qualquer tipo de discriminação pelo facto de ser uma brasileira num lugar de destaque, até pelo contrário. “Fui sempre muito bem acolhida”.

Também o investigador Evandro Garcia transmite o mesmo sentimento de acolhimento. Chegou apenas há três anos a Portugal, um pouco antes da pandemia começar, mas é em Coimbra que se sente em casa, mesmo já tendo morado em 10 países diferentes. Engenheiro eletrotécnico, lidera a equipa que em maio deste ano foi notícia por desenvolver um projeto de frigoríficos e arcas congeladoras para zonas sem acesso a eletricidade.

Evandro veio para Coimbra fazer doutoramento. Já tinha feito mestrado na Alemanha, e procurava um complemento do curso “que não fosse tão teórico, mais voltado para a inovação, empreendedorismo, tecnologia. E a universidade de Coimbra tinha isso mesmo”, conta ao DN. Ao cabo destes três anos, ele e a companheira já se tornaram pais. E esta nova família sente-se bem por cá, não fazendo tensões de voltar ao Brasil tão cedo.

Natural de São Paulo, o investigador acompanha à distância a realidade do país, ansioso por vê-lo “voltar a ter investimento na Educação, onde tivemos muitos cortes ultimamente”. Evandro foi apoiante do candidato Lula da Silva e anseia que, enquanto Presidente, “ela [a Educação] volte a ser uma prioridade”. Até lá, preocupam-no as condições de vida do seu povo, a inflação e, sobretudo, a insegurança. Ao invés, a segurança é o que mais valoriza em Portugal, a par da “qualidade de vida”, ele que mora mesmo no centro da cidade de Coimbra e se habituou a olhar de perto o Mondego e o Jardim Botânico todos os dias, numa cumplicidade com a natureza que diz não ter encontrado noutro lugar. “A pouca distância temos parques para crianças, uma coisa que agora valorizo muito, desde que nasceu a minha filha. Podemos ir lá de transporte público, ou até mesmo andando. Acho que se está a transformar numa boa cidade”, afirma, sendo mais apreciador desta dimensão do que de “cidades megalómanas”.

Um monárquico na República Portuguesa

Ibsen Noronha formou-se em 1993 na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, cidade de onde é natural. “Naquele momento decidi que queria continuar os meus estudos jurídicos. Ora, para um brasileiro, Coimbra é um mito”, afirma ao DN um dos mais antigos professores da universidade. “Eu, na minha tenra idade (tinha 25 anos), julgava que ficaria dois anos…já cá estou há praticamente 30”, revela o professor, que é também um conhecido conferencista e escritor.

Ibsen costuma brincar com a sua própria história: “ou me casava ou vinha para Coimbra”. Seguiu pelo caminho da razão, que o conduziu, afinal, ao do coração – casou em Coimbra, com a filha de um professor catedrático da Faculdade de Medicina. Como se fosse uma artimanha do tempo dos Filipes, “que quando tomaram conta de Portugal, o plano deles era mandar os estudantes de Salamanca para Coimbra e os de Coimbra para Salamanca, para se casarem”. Como é sabido, a história não acabou bem. “Porque de Espanha nem bom vento, nem bom casamento”, ironiza Noronha.

Nos anos 90 “era um outro Portugal” aquele que o jovem Ibsen encontrou, tal como Coimbra era outra. E apesar de se manter fiel à [sua] universidade, acabou por se mudar para Lisboa, onde reside. “Naquele tempo eu fazia uma patuscada numa tasca com 500 escudos. Hoje, com dois euros, eu só consigo tomar um café”, frisa.

Nestas três décadas, o professor de Direito regressou ao Brasil por quatro anos, no final dos anos 90. Mas acabou por voltar a Portugal e a Coimbra. Aqui, enquanto professor, encantam-no “sobretudo as tradições”. “Eu acho que nenhum país é ele mesmo sem as suas tradições”, diz ao DN. A começar pela gastronomia. É um devoto de carne de porco à alentejana, que no Brasil encontra paralelo na feijoada.

Monárquico ferrenho, Ibsen Noronha está habituado a pagar a respetiva multa em cada eleição, porque não vota. E o voto é obrigatório no Brasil. “Nunca votei na minha vida. Por isso, os presidentes não me dizem muita coisa”, admite, embora se mantenha atento a toda a realidade do país onde nasceu.

“A solução para o Brasil era não ter eleições presidenciais. Elas causam muitos problemas”, considera este professor, defendendo uma chefia de Estado como a da Península Ibérica “durante mais de mil anos, ou como ainda aqui ao lado, em Espanha, uma tradição muito arreigada que vem da época dos visigodos”. “As eleições locais acho-as até interessantes. Mas as presidenciais não me dizem nada”, afirma.

Ibsen Noronha diz que nunca augurou “nada de bom com a República brasileira” e cita mesmo Alberto Campos que a compara à “cosa nostra”. Nas primeiras aulas de Administração Pública, pergunta sempre aos alunos qual é a finalidade desta. “Eles ficam calados. Passado um tempo lá dizem “o bem comum”. Ora, infelizmente, o que tem acontecido é que a República divide o país, e a administração resulta para determinadas fações”, considera, “enquanto a monarquia sempre teve o condão de o unir, graças a uma herança portuguesa”.

A esperança em Lula

Cristina Freitas vota em Lula da Silva desde 1989. Ao DN sublinha que privilegia “pessoas e projetos e não partidos políticos”, revendo-se desde sempre na figura do presidente-operário. E apesar desta viragem que a enche de esperança, entra em 2023 preocupada com o futuro: “Nós temos quatro anos de uma herança muito negativa, nomeadamente para a Ciência, para a Cultura, para a Educação, e vai demorar a reverter o que se fez mal e não se devia ter feito”.

Por outro lado, preocupam-na também os indicadores sociais e económicos, intrinsecamente ligados. “Sei que o Lula vai ter um desafio muito grande pela frente, mas confio que será capaz, porque tem uma grande capacidade negocial. Se há pessoa capaz de a articular é ele”.

3000
Brasileiros – Os dados mais recentes da Universidade de Coimbra estimam que por ali circulam todos os dias cerca de três mil brasileiros. Na sua esmagadora maioria são estudantes, mas cresce cada vez mais o número de docentes e investigadores que procuram esta universidade do país. Recentemente, também a Universidade do Minho, em Braga, tem vindo a aumentar consideravelmente o número de professores e alunos oriundos do Brasil.

 

FONTE: Este conteúdo foi originalmente publicado pelo Diário de Notícias, um jornal sediado em Lisboa e fundado em 1864.

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